Na última década, o cruzamento industrial de bovinos tornou-se uma importante ferramenta estratégica para implementar a produção de carne nos diferentes sistemas produtivos no Brasil. Isto, em parte, ocorreu em função, principalmente, do aumento da prática de inseminação artificial, e conseqüentemente, pela possibilidade e acessibilidade a sêmen de touros de uma ampla variedade de raças.
A combinação ou o acasalamento de duas ou mais raças adaptadas para corte de diferentes tipos biológicos, que tem por objetivo melhorar a eficiência na produção de carne, deve ser entendido como cruzamento industrial. O benefício gerado pela utilização do cruzamento industrial é poder explorar os efeitos da heterose ou vigor híbrido, que podem estar relacionados, não só no aspecto produtivo (ganho de peso, peso de carcaça, fertilidade, precocidade etc.), mas também no aspecto qualitativo da carcaça (melhor acabamento, marmorização e maciez). O cruzamento permite de forma mais rápida a obtenção de características desejáveis (carcaça, precocidade, etc.) em relação à seleção nas raças puras, efeito este também podendo ser chamado de complementaridade. Neste ponto, deve ser esclarecido e enfatizado que o cruzamento de Zebuínos com raças adaptadas para leite, não é e, portanto, não deve ser chamado de cruzamento industrial, por razões óbvias.
O tipo de estratégia/cruzamento a ser adotado vai depender, principalmente dos “objetivos” do sistema de produção, além, é claro, do tipo de produto requerido pelo mercado.
Os cruzamentos podem ser do tipo:
1)Rotacionado: uso de apenas duas raças, segurando as fêmeas para reprodução, sendo estas acasaladas com animais da raça da mãe ou do pai (retrocruzamento);
2)Terminal: cruzamento entre duas raças, onde todos os produtos são destinados ao abate;
3)Rotacionado-terminal: usa-se duas raças para produzir o F1, e cruza-se as fêmeas F1 com uma terceira raça, onde os produtos, machos e fêmeas, são destinados ao abate.
Podemos citar também o cruzamento para formação de uma nova raça, também conhecido como “boi composto”, onde diferentes raças possuem características desejáveis por determinado “nicho de mercado” (adaptabilidade, precocidade, peso adulto, resistência a parasitas, etc.). Porém, vamos nos limitar a apresentar algumas diferenças entre os tipos de cruzamentos usados diretamente para a produção de carne.
Ao adotar ou escolher as raças a serem utilizadas em um programa de cruzamento industrial, deve-se ter em mente primeiro os objetivos do cruzamento no sistema de produção, e com base nisso, é necessário o conhecimento das características das raças, para escolher as que possam se adequar aos objetivos do sistema de produção.
Quando se faz referência a raças para programas de cruzamento industrial, usa-se muito a palavra precocidade, que deve ser entendida como velocidade com que o bovino atinge a maturidade sexual (puberdade), ocasião esta em que o animal completa o crescimento ósseo e a maior parte da musculatura já está desenvolvida. A idade, ou a rapidez com que os bovinos atingem a puberdade está diretamente associada à “precocidade de terminação”. O termo “precocidade de terminação” deve ser utilizado para referir-se a animais que atingem a quantidade de gordura adequada na carcaça para o abate em idade jovem. A principal causa de uma raça ser mais precoce que outra ocorre em função do frame size, ou melhor tamanho à maturidade (idade adulta) que pode ser de grande, médio ou pequeno porte. Na figura 1 (veja no final do texto como visualizar este artigo em PDF) é possível observar bem claramente essas diferenças, onde os animais de diferentes tamanhos atingem a puberdade e a maturidade com diferentes peso e idade.
Do mesmo modo que o tamanho corporal, as raças ainda podem ser classificadas de acordo com grau de musculosidade: grossa, moderada e fina (Tabela 1).
Animais de raças de tamanho grande e musculatura grossa têm taxas de crescimentos maiores (maior ganho de peso), porém são mais tardias para acumular gordura na carcaça, permanecendo por tempo superior no confinamento, tendo maior demanda por alimento. As raças de tamanho pequeno e musculatura moderada apresentam menores ganhos, porém são mais precoces em termos de acabamento de carcaça.
Em alguns sistemas de cruzamento, o uso de raças de porte maior, porém com acabamento mais tardio, pode ser mais interessante do ponto de vista econômico, pois tais raças atingem maior peso de carcaça, devendo-se levar em conta no plano nutricional a maior exigência destes animais. Por outro lado, raças terminadas mais precocemente, com peso mais leve e maior quantidade de gordura na carcaça, podem ser mais viáveis, principalmente do ponto de vista nutricional, pois o consumo de alimentos é menor.
A combinação entre raças de maior porte e de pequeno porte podem prover animais com carcaças mais pesadas e boa cobertura de gordura. A estratégia com que se realiza os cruzamentos depende dos objetivos de cada propriedade. O cruzamento com raças de maior porte é, talvez, mais indicado para o abate, tanto de machos como de fêmeas, também chamado de cruzamento terminal. Entretanto, o uso de raças de menor porte em programas de cruzamento pode ser interessante quando deseja-se manter as fêmeas F1 (animais oriundos do primeiro cruzamento) no rebanho como reposição, pois estas são precoces sexualmente, entrando na vida reprodutiva mais cedo. Sendo que estas fêmeas podem receber touros de raças com maior tamanho a maturidade, abatendo-se todos os produtos.
O uso de raças adaptas como Tulli, Bonsmara, Caracu, Canchim, Montana, entre outras, deve ser considerado nos cruzamentos, especialmente se o objetivo for trabalhar com animais com alto grau de sangue europeu.
Resultados de pesquisa e simulações econômicas de Instituições como a Embrapa demostram que o cruzamento industrial permite incrementos na produtividade de até 25%. No entanto, erros na adoção da estratégia bem como na condução do sistema de cruzamento vêm sendo cometidos ao longo dos anos. Os erros em geral estão relacionados a problemas básicos na fazenda, ou seja, manejo sanitário e nutricional. O que foi possível notar é que é inadequado o manejo nutricional adotado por parte das propriedades que se utilizam do cruzamento industrial, tendo como base os animais de origem zebuína, que apresentam menores exigências. Como conseqüência disto, o que tem sido observado são animais cruzados, que apesar do maior peso de carcaça, apresentam acabamento inferior aos zebuínos (Tabelas 2 e 3).
Barbosa (2002) realizou um extenso levantamento de dados em diversos trabalhos onde se comparavam as características produtivas de diferentes grupamentos genéticos de raças de corte em relação aos zebuínos puros. Os componentes produtivos considerados no trabalho são peso de carcaça, idade e acabamento (espessura de gordura, mm) para animais terminados em confinamento ou pasto (Tabelas 2 e 3). É possível notar que os animais cruzados foram abatidos com idade inferior aos zebuínos quando para um mesmo peso de carcaças, porém observa-se menor grau de acabamento em praticamente todas as situações de cruzamento, independente de animais terminados a pasto ou em confinamento.
Os resultados indicam que os animais de cruzamento industrial estariam sendo abatidos com o peso abaixo do ideal, insuficiente para atingir a espessura ideal de gordura subcutânea (5 mm), ou o manejo nutricional estaria inadequado para as exigências. As raças européias, por terem maiores taxas de crescimento e maior peso adulto em relação aos zebuínos, apresentam maiores exigências energéticas para que todo o seu potencial genético seja explorado. Almeida e Lanna (2003) observaram que o consumo de MS de animais europeus puros (Angus) e cruzados (Brangus) foram 12 e 10% superiores em relação aos animais Nelore, respectivamente. Com base nestes dados, pode-se concluir que as diferenças de consumo estão relacionadas às diferentes exigências energéticas.
Um dos fatores limitantes na produção de carne do país é a ineficiência em suprir alimentação adequada para o rebanho, ou melhor “o problema é a falta de comida”. Neste cenário, animais de maior exigência, como os cruzados criados de maneira “tradicional”, têm o seu desenvolvimento prejudicado, sendo abatidos com peso e acabamento de carcaça inadequados. Enquanto que o animal Zebu, que tem menor exigência, é o menos prejudicado.
Animais de cruzamento industrial, desde que manejados de forma correta, possibilitam vários benefícios para cadeia com um todo, do produtor ao consumidor. Além de permitir carcaças mais pesadas e melhor acabamento, o cruzamento origina carne com maior maciez. Sem considerar o mau processamento de carcaça, sabe-se que a variação genética tem considerável influência na palatabilidade da carne. Diversos trabalhos foram realizados, principalmente na Austrália e EUA, e alguns também no Brasil, demonstrando que o uso de raças taurinas no cruzamento com zebuínos melhora de forma significativa a palatabilidade da carne, devido à melhora na maciez. Atributo este determinante para a aceitabilidade pelo consumidor, devendo ser considerado quando se diz respeito a mercados mais exigentes, como o europeu, por exemplo.
O banco de dados do MSA (Meat Austrália Standart) demonstra que em condições comerciais a porcentagem de Bos indicus (zebuinos) nos cruzamentos apresentava grande efeito na palatabilidade da carne (Tabela 4). Carcaças oriundas de animais com 75% ou mais de sangue zebu apresentaram 63% das carcaças com baixa palatabilidade, de acordo com testes em consumidores, enquanto que em animais com menos de 25% de sangue zebu, apenas 11% das carcaças foram reprovadas no teste.
Animais com maior grau de sangue zebu, de modo geral, apresentam carne com maciez inferior a animais cruzados. Estas diferenças entre Bos taurus e Bos indicus podem estar associadas ao sistema calpaína-calpastatina, pois animais zebuínos apresentam concentrações de calpastatina no músculo superiores aos taurinos. A calpastatina é o inibidor da ação da calpaína durante o processo de proteólise pós-morten. Isto determina estreita relação deste inibidor com a menor maciez da carne. O maior grau de sangue zebuíno diminui a atividade de ì-calpaína, e aumento da calpastatina. E o aumento da relação calpastatina: calpaína está associado à diminuição da maciez e aumento da força de cizalhamento.
Na Austrália, o sistema de classificação de carcaça promove “descontos” na pontuação em função da porcentagem de Bos indicus no cruzamento. Porém, devido à importância do zebu naquele país pelas condições de clima, as carcaças geralmente passam por processos de estimulação elétrica, maturação, ou ainda podem ser penduradas pela pelve, ações que melhoram a maciez da carne.
No processo de tomada de decisão da escolha das raças para o programa de cruzamento industrial, deve-se estudar as características (precocidade, rusticidade, etc.) mais adequadas aos objetivos do sistema de produção. Freqüentemente, temos observado insucessos em sistemas onde as raças escolhidas não eram as mais adequadas. É indiscutível a importância do zebu para pecuária brasileira, sendo talvez o principal responsável pelo Brasil estar se tornando exportador competitivo. Com cruzamento, é possível melhorar ainda mais a eficiência produtiva, agregar valores ao produto, e principalmente atender a mercados mais exigentes, tanto o externo como o interno.
Cundiff et al. (1993), ao concluir um trabalho de mais de 30 anos com cruzamentos de diferentes raças, resume o cruzamento industrial com a seguinte frase: “Nenhuma raça foi superior em todas as características para produção de carne bovina. Sistemas de cruzamento que exploram a heterose e a complementaridade e compatibilizam o potencial genético com restrições de mercado, alimentares e de clima fornecem o meio mais efetivo de melhorar geneticamente a eficiência da produção”.
FONTE
Grupo cultivar
http://www.grupocultivar.com.br/artigos/as-vantagens-de-cruzar
Marcelo de Queiroz Manella
Doutorando / USP
* Este artigo foi publicado na edição número 04 da revista Cultivar Bovinos, de fevereiro de 2004.
* Confira este artigo, com fotos e tabelas, em formato PDF. Basta clicar no link abaixo:
bovinos04_cruzamentoindustrial
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